Na ilha de São
Miguel, no arquipélago dos Açores, existe um belíssimo lugar com duas lagoas
unidas por um istmo. Uma é verde, e a outra, azul. Chama-se Sete Cidades a esse
lugar. Numa das lagoas há um promontório que leva o nome de Ponta do Silêncio.
Para lá vão os turistas para simplesmente não escutarem nada. A grande ventura
é abrir os braços à aragem, fechar os olhos e escutar apenas o rumor da alma.
Dá gosto vê-los em êxtase.
Não é por nada que isso acontece: vivemos uma cultura do ruído, do estrépito, dos tiros, das bombas e, 1 em especial, da constante metralha dos potentes aparelhos de som. Não basta escutar Miles Davis - a propósito, genial -, é preciso que os vizinhos saibam que gostamos de Miles Davis, é preciso que a cidade, que o bairro, que o universo saibam. Chegando mais para o nosso tempo, a estética do bate-estaca transformou-nos em metrônomos ambulantes. Não há melodia, há apenas ritmo em decibéis ferozes. Isto é: falta um componente essencial ao que chamamos música. Dentro dos carros o som é potencializado, coisa de que nos damos conta nas sinaleiras. Os motoristas, autômatos, têm os olhos vidrados e espumam pela boca. O Chaplin de Tempos Modernos já não seria aquele operário que depois de um dia de trabalho sai parafusando todos os botões que encontra pela frente. Com certeza sairia à rua com dois tampões nos ouvidos. Talvez por isso estejamos perdendo a capacidade de ouvir os outros, e na secular arte da conversação o silêncio tornou-se moeda rara. São poucos os que ainda guardam a capacidade de escutar o que dizemos. Esquecendo-se de que o diálogo é a melhor forma de convivência, e que o diálogo pressupõe pausas criadoras, e que só ouvindo podemos responder, essa gente acelerada pensa somente naquilo que dirá em seguida que não será uma resposta, mas a continuação de seu longo monólogo. Eles podem conceber que têm esse defeito, mas para dizer isso levarão horas. E ainda esperam ser absolvidos. Nos dias de hoje, o doutor da Bergstrasse número 19, o doutor do charuto, o que pregou a cura pela palavra, escreveria um erudito artigo à Sociedade Científica de Viena, expondo as vantagens da cura pelo silêncio.
Assim, vamos lutar por um dia especial, semelhante ao dia dos pais, da sogra, do papagaio. Nessa data, que as pessoas deixem de falar, que emudeçam as buzinas, que as motos e os carros não circulem. Que o orador guarde seus discursos, que o corneteiro não toque a alvorada. Que as mães, por favor, não ralhem com os filhos. Que todo movimento cesse, lentamente cesse.
Então haverá uma pausa na engrenagem do universo.
E poderemos ouvir sobre nossas cabeças um tênue ruflar: serão as asas do anjo do silêncio sobrevoando, em majestosa graça, cidades e os campos serenados. Levará o indicador sobre os lábios unidos, e em sua boca um sorriso de paz.
Pasmos de tanto encanto, nunca mais seremos os mesmos.
Fonte: Luiz Antonio de Assis Brasil, ZERO HORA, 07/07/2002.
Músico americano, considerado o ícone de jazz nos anos 50.
Não é por nada que isso acontece: vivemos uma cultura do ruído, do estrépito, dos tiros, das bombas e, 1 em especial, da constante metralha dos potentes aparelhos de som. Não basta escutar Miles Davis - a propósito, genial -, é preciso que os vizinhos saibam que gostamos de Miles Davis, é preciso que a cidade, que o bairro, que o universo saibam. Chegando mais para o nosso tempo, a estética do bate-estaca transformou-nos em metrônomos ambulantes. Não há melodia, há apenas ritmo em decibéis ferozes. Isto é: falta um componente essencial ao que chamamos música. Dentro dos carros o som é potencializado, coisa de que nos damos conta nas sinaleiras. Os motoristas, autômatos, têm os olhos vidrados e espumam pela boca. O Chaplin de Tempos Modernos já não seria aquele operário que depois de um dia de trabalho sai parafusando todos os botões que encontra pela frente. Com certeza sairia à rua com dois tampões nos ouvidos. Talvez por isso estejamos perdendo a capacidade de ouvir os outros, e na secular arte da conversação o silêncio tornou-se moeda rara. São poucos os que ainda guardam a capacidade de escutar o que dizemos. Esquecendo-se de que o diálogo é a melhor forma de convivência, e que o diálogo pressupõe pausas criadoras, e que só ouvindo podemos responder, essa gente acelerada pensa somente naquilo que dirá em seguida que não será uma resposta, mas a continuação de seu longo monólogo. Eles podem conceber que têm esse defeito, mas para dizer isso levarão horas. E ainda esperam ser absolvidos. Nos dias de hoje, o doutor da Bergstrasse número 19, o doutor do charuto, o que pregou a cura pela palavra, escreveria um erudito artigo à Sociedade Científica de Viena, expondo as vantagens da cura pelo silêncio.
Assim, vamos lutar por um dia especial, semelhante ao dia dos pais, da sogra, do papagaio. Nessa data, que as pessoas deixem de falar, que emudeçam as buzinas, que as motos e os carros não circulem. Que o orador guarde seus discursos, que o corneteiro não toque a alvorada. Que as mães, por favor, não ralhem com os filhos. Que todo movimento cesse, lentamente cesse.
Então haverá uma pausa na engrenagem do universo.
E poderemos ouvir sobre nossas cabeças um tênue ruflar: serão as asas do anjo do silêncio sobrevoando, em majestosa graça, cidades e os campos serenados. Levará o indicador sobre os lábios unidos, e em sua boca um sorriso de paz.
Pasmos de tanto encanto, nunca mais seremos os mesmos.
Fonte: Luiz Antonio de Assis Brasil, ZERO HORA, 07/07/2002.
Músico americano, considerado o ícone de jazz nos anos 50.
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