Não é dito na tradição cristã
que a palavra seja o princípio, mas que ela está “no princípio” — e não no
começo como algumas traduções inadequadas. “No princípio era a Palavra”. Ora o
princípio, é o silêncio. É com efeito do silêncio – o Pai, ou ainda o Nada em certas tradições espirituais – que surge a Palavra. E logo,
quando se rompe esta ligação entre silêncio e palavra – ao passo que a palavra
é a encarnação, a revelação do silêncio – uma tal palavra não é mais portadora
do que quer que seja, ela é vazia e mentirosa. Uma vida, é
verdade, ou melhor “a” vida nos
é dada para experimentar isso. A vida, “minha” vida,
que não poderia se medir em tempo de relógio ou em tempo solar.
O silêncio autêntico, certamente, não é uma ausência de palavra. Mas a
que tipo de palavra encontra-se ligado? Ao que as tradições judaica, hindu e
greco-cristã chamam respectivamente dabar, vac, logos –
dito de outra forma, em todos os casos, a palavra “primordial”.
“No princípio era a palavra”, está escrito na Índia cerca de sete ou
oito séculos antes de São João. Não é portanto novo... No Talmude, quase na
mesma época de João, chama-se esta palavra “memra”, a palavra autêntica, aquela
que está mais longe de toda falação. Ora a palavra é autêntica quando procede
do silêncio. Há esta colocação extraordinária de Irineu de Lião, no século II da era cristã: “Do
silêncio do Pai surge
a Palavra do Filho”.
A palavra surge do silêncio. A palavra e o silêncio são as duas faces do mistério trinitário.
Há um adágio árabe que
diz: “Se tuas palavras não valem mais que teu silêncio, cala-te”. Silêncio e
palavra vão estritamente de par. O êxtase e do
silêncio é a palavra.
Os textos do Aitareya Brahmana e de São João (No princípio er o Verbo), e ainda outros,
como fiz lembrar, dizem bem: “No princípio era a palavra”; mas a Palavra não era “o” princípio. O
princípio – é assim que se traduz In principio, o arche – é o silêncio. E do
silêncio surge, aparece, se revela a palavra. O Pai é
o silêncio, o Filho é
a Palavra, o Logos. E toda palavra que não é
prenhe de silêncio não é uma palavra. Já citei este texto tão forte do
evangelho no qual nos será cobrada a razão de
toda palavra leviana, inútil (Bons frutos)... O termo empregado é “anergon”, uma palavra que não tem energia,
que não é sacramental, que não é causa do que diz. Mas disto perdemos o
sentido. Toda palavra deve ser sacramento, deve causar o que exprime, na falta
do que ela é destituída de força, sem eficiência.
Uma anedota da vida de
Gandhi a ilustra maravilhosamente. Deve-se contextualizá-la nas condições
do ashram onde ele vivia então. Uma das mulheres do ashram
demanda um dia ao Mahatma Gandhi, em um sat-sang (uma reunião): “V. poderia
fazer entender a minha filha que ela come muitos doces; eu a digo
que vai estragar os dentes, mas ela não me escuta; se lhe disseres talvez ela
leve em conta”. Gandhi elevou sobre ela um olhar de tristeza e
nada disse. Esta mulher temeu ter dado um passo em falso, de falar o que não
devia ser falado. Algumas semanas mais tarde, ele reencontrou Gandhi nos
serviços do ashram e
sentiu a necessidade de se desculpar junto a ele por tê-lo sem dúvida
importunado. “Quando me demandastes de falar a tua filha, lhe respondeu
Gandhi, eu também
abusava dos doces; agora, estou disto curado. Traga-a e lhe direi que não deve
comer muitos doces”.
Enquanto em si mesmo não
se está encarnado no que se diz, as palavras não tem qualquer força. Todos os
sermões do gênero “Sejam bons...”, são bla-bla-bla. Devo poder dominar eu mesmo
a concupiscência que
experimento diante dos doces, antes de dizer que deles não se deve abusar.
“Traga-a, lhe falarei e ela poderá obedecer”... Eis aí a força da palavra que
sai de um silêncio prévio, matriz de toda palavra. É por isto que a palavra,
quando é verdadeiramente palavra, é revelação. E é por isto que inversamente
a prostituição da
palavra é um dos pecados culturais
maiores da humanidade.
Raimon Panikkar – Entre Deus e o
Cosmos
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