sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O Grande Silêncio



"O Grande Silêncio" é o primeiro filme sobre a vida interior da Grande Chartreuse, casa-mãe da Ordem dos Cartuxos, uma meditação silenciosa sobre a vida monástica. Dezassete anos depois de ter pedido autorização para filmar no mosteiro, é dada autorização para entrar ao realizador, que filmará a vida interior dos monges cartuxos. Sem música à excepção dos cânticos do mosteiro, sem entrevistas, nem comentários, ou artifícios. Evocam-se unicamente a passagem do tempo, das estações, os elementos repetidos incessantemente durante o dia ou as orações. Um filme sobre a presença do absoluto e a vida de homens que dedicam a sua existência a Deus. O filme ganhou os Prémios de Melhor Documentário no Festival de Sundance e nos Prémios Europeus do Cinema.


Realizador Philip Gröning

"SÓ EM COMPLETO SILÊNCIO SE COMEÇA A ESCUTAR"

A vocação do silêncio


José Luís Peixoto penetrou no praticamente inacessível mundo de contemplação do Convento da Cartuxa. Ali, dez monges vivem em isolamento total, movidos pela fé.

Caminhava com o prior ao longo dos claustros quando os sinos começaram a tocar. A dissolverem-se no céu ou a retinirem nas paredes de pedra, chamavam para as vésperas e, longamente, acompanharam-nos até à entrada da igreja. A tarde dobrava o ponto em que o calor se transformava em calma, primavera de Deus. No interior da igreja, era fresco o eco da lonjura. Quase indistinto dos objetos e das imagens, imóvel, sentado, com o capuz a cobrir-lhe a cabeça, estava um monge velho, curvado. O prior apontou-me um lugar, fez-me gesto para esperar ali e saiu. O monge e eu ficamos a respirar. Foi então que o silêncio começou.

Calcular a passagem do tempo dentro do silêncio é comparável a contar segundos pela chama de uma vela ou por um abraço. Semelhante a estes dois exemplos, também o silêncio transporta um sentido imperturbável que é maior do que o tempo que pode ser medido. Como se acontecesse noutro lugar, como se ignorasse os minutos e, assim, lhes subtraísse toda a força da sua importância. O silêncio não se deixa transformar por horas, dias ou séculos. Aquilo que o silêncio era em 1084, quando São Bruno fundou a Ordem da Cartuxa, continua a ser, hoje, o silêncio

Não sei quantos minutos passaram até começarem a chegar monges e o prior entre eles. Os passos no estrado de madeira, o som de encontrarem o seu lugar, de tirarem os livros enormes e de os abrirem. E ninguém dirigia a atenção para fora daquilo que estava a fazer, ninguém fazia um gesto desnecessário, ninguém procurava o olhar de ninguém. As vésperas são o último serviço litúrgico no dia de um monge cartuxo. O primeiro tem início à meia-noite e, na semi-escuridão da capela, dura cerca de duas horas e meia. São as matinas. Dividem o sono dos cartuxos, que dormem entre as oito e trinta e um pouco antes da meia-noite, voltando depois a dormir entre as três e as seis e meia da manhã. Às oito, inicia-se a missa, que dura cerca de uma hora. Nesses três momentos diários, sem acompanhamento instrumental, apenas voz, os monges cartuxos cantam. Naquele fim de tarde, quando todos estavam prontos, quando chegou o instante, o prior começou a cantar. Era quinta-feira, cantaram-se os salmos das quintas-feiras, 138, 139 e 140. Em gregoriano, um dos lados da igreja cantava um verso, o outro lado da igreja respondia com o seguinte. Encostados a paredes opostas, virados uns para os outros, de cabeça baixa, coberta pelo capuz branco do hábito, com o rosto fixo nas páginas do livro, os monges cantavam em português. Na vibração das vozes, dentro da sua mistura coletiva, era possível distinguir-se os erres suaves do monge californiano e, noutras vezes, os erres mais rasgados dos monges espanhóis.


O Convento de Santa Maria Scala Coeli, em Évora, conhecido como Convento da Cartuxa, único convento ativo desta ordem em Portugal, é a casa de sete monges espanhóis, dois portugueses e um norte-americano. Além destes, o convento recebe um número variável de aspirantes. A língua comum é o português, que, neste caso, não é tanto uma língua de falar, mas é sobretudo uma língua de ler, de pensar ou, mais ainda, é uma língua de orar. A Cartuxa é uma ordem contemplativa: entre os seus princípios fundamentais encontram-se a oração, a clausura, o silêncio e a solidão.

José Luís Peixoto - na Cartuxa de Évora

Chove. Há Silêncio


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Silêncio



- entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas
entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas
e magias recortadas dos sonhos que acontecem naturalmente.
eu sou cama onde me deito, todas as noites diferente,
eu sou o sorriso estridente dos pássaros no céu todo,
eu sou o mar, o oceano velho a abrir a boca numa
gruta que assusta as crianças e os homens que conhecem
o mundo. eu sou o que não devia e rio, rio,
rio, porque sou puro, porque sou um pouco da alegria,
porque mil mãos e dez mil dedos me percorrem o corpo
e me beijam. entre mim e o meu silêncio há uma
confusão de equívocos que não entendo e não admito.
sou arrogante, porque sou do país em que inventaram
a arrogância. sou miserável. que sei eu? sou um viajante
com destino traçado, como o fumo deste cigarro que
desaparece indeciso e já esqueceu de onde veio. e rio,
rio, rio, perdido e desalmado, de dentes sujos e quase
doente, porque minha é esta esperança e esta vontade
de nascer cada manhã, em cada rosto, em cada
fósforo aceso, em cada estrela. rio, rio, rio, porque meu
é o amor e o luto e a fome e todas as coisas
que fazem esta vida que não entendo e persigo.
eu sou um homem vivo a sentir cada pedra,
eu sou um homem vivo a sentir cada montanha,
eu sou um homem vivo a sentir cada grão de areia.
desordenadamente, eu sou alguém que é eu sem o saber,
entre mim e o meu silêncio há um desentendimento
esculpido nas flores e nas nuvens, rio, rio, rio,
eu sou a vida e o sol a iluminar-me.

- como não tenho lugar no silêncio onde morrem as gaivotas
como não tenho lugar no silêncio onde morrem as gaivotas,
despeço-me no oceano e deixo que o céu me conheça.
talvez a serenidade possa ser as minhas mãos a serem uma
brisa sobre a terra e sobre a pele nua de uma mulher.
esse dia, esperança de amanhã, poderá chegar e estarei dormindo.
hoje, sou um pouco de alguma coisa, sou a água salgada
que permanece nas ondas que tudo rejeitam e expulsam
na praia. as gaivotas sobrevoam o meu corpo vivo. os meus
cabelos submersos convidam o silêncio da manhã, raios de sol atravessam
o mar tornados água luminosa. aqui, estou vivo e sou alguém 
muito longe.

Poemas extraídos da obra: A Criança em Ruínas
José Luís Peixoto

Orações e Poemas


“Orações e poemas são a mesma coisa:
palavras que pronunciamos a partir do silêncio,
pedindo que o silêncio nos fale.”


Rubem Alves

Silêncio


Palavras que não se soltam,
Num silêncio sufocante,
Busco as letras que vacilam,
Num mutismo acutilante.
Procuro o ser que não sendo,
Insiste em Ser, todavia,
Nesta (in)certeza vivendo,
Incandescente agonia.
Palavras que não se soltam,
Em sílabas agonizantes,
Caminham, correm, tropeçam,
Em murmúrios sibilantes.
Procuro ver-te, não vendo,
Nesta (in)grata cegueira,
Amar-te, amar mal sabendo,
Numa apagada fogueira.
Palavras que não se soltam,
Em gemidos latejantes,
Moribundas, já não voltam,
Deste mundo estão distantes.


Alcina Moreira