José Luís Peixoto penetrou no praticamente inacessível
mundo de contemplação do Convento da Cartuxa. Ali, dez monges vivem em
isolamento total, movidos pela fé.
Caminhava com o prior ao longo dos claustros quando os
sinos começaram a tocar. A dissolverem-se no céu ou a retinirem nas paredes de
pedra, chamavam para as vésperas e, longamente, acompanharam-nos até à entrada
da igreja. A tarde dobrava o ponto em que o calor se transformava em calma,
primavera de Deus. No interior da igreja, era fresco o eco da lonjura. Quase
indistinto dos objetos e das imagens, imóvel, sentado, com o capuz a cobrir-lhe
a cabeça, estava um monge velho, curvado. O prior apontou-me um lugar, fez-me
gesto para esperar ali e saiu. O monge e eu ficamos a respirar. Foi então que o
silêncio começou.
Calcular a passagem do tempo dentro do silêncio é
comparável a contar segundos pela chama de uma vela ou por um abraço.
Semelhante a estes dois exemplos, também o silêncio transporta um sentido
imperturbável que é maior do que o tempo que pode ser medido. Como se
acontecesse noutro lugar, como se ignorasse os minutos e, assim, lhes
subtraísse toda a força da sua importância. O silêncio não se deixa transformar
por horas, dias ou séculos. Aquilo que o silêncio era em 1084, quando São Bruno
fundou a Ordem da Cartuxa, continua a ser, hoje, o silêncio
Não sei quantos minutos passaram até começarem a chegar
monges e o prior entre eles. Os passos no estrado de madeira, o som de
encontrarem o seu lugar, de tirarem os livros enormes e de os abrirem. E
ninguém dirigia a atenção para fora daquilo que estava a fazer, ninguém fazia
um gesto desnecessário, ninguém procurava o olhar de ninguém. As vésperas são o
último serviço litúrgico no dia de um monge cartuxo. O primeiro tem início à
meia-noite e, na semi-escuridão da capela, dura cerca de duas horas e meia. São
as matinas. Dividem o sono dos cartuxos, que dormem entre as oito e trinta e um
pouco antes da meia-noite, voltando depois a dormir entre as três e as seis e
meia da manhã. Às oito, inicia-se a missa, que dura cerca de uma hora. Nesses
três momentos diários, sem acompanhamento instrumental, apenas voz, os monges
cartuxos cantam. Naquele fim de tarde, quando todos estavam prontos, quando
chegou o instante, o prior começou a cantar. Era quinta-feira, cantaram-se os
salmos das quintas-feiras, 138, 139 e 140. Em gregoriano, um dos lados da
igreja cantava um verso, o outro lado da igreja respondia com o seguinte.
Encostados a paredes opostas, virados uns para os outros, de cabeça baixa,
coberta pelo capuz branco do hábito, com o rosto fixo nas páginas do livro, os
monges cantavam em português. Na vibração das vozes, dentro da sua mistura
coletiva, era possível distinguir-se os erres suaves do monge californiano e,
noutras vezes, os erres mais rasgados dos monges espanhóis.
O Convento de Santa Maria Scala Coeli, em Évora,
conhecido como Convento da Cartuxa, único convento ativo desta ordem em
Portugal, é a casa de sete monges espanhóis, dois portugueses e um
norte-americano. Além destes, o convento recebe um número variável de
aspirantes. A língua comum é o português, que, neste caso, não é tanto uma
língua de falar, mas é sobretudo uma língua de ler, de pensar ou, mais ainda, é
uma língua de orar. A Cartuxa é uma ordem contemplativa: entre os seus
princípios fundamentais encontram-se a oração, a clausura, o silêncio e a
solidão.
José Luís Peixoto - na Cartuxa de Évora